top of page

À medida que os anos passam, apercebo-me que as escolhas aumentam. Se recuar às férias da minha infância, não tinha muito por onde escolher. Se chovesse, ficava em casa. Se fizesse sol, juntava-me ao amigos lá fora. E se os desenhos animados transmitissem às 16 horas, sentava-me em frente ao ecrã porque era a única oportunidade que tinha de vê-los, não havia maneira de andar para trás ou carregar no pause.

Hoje, tudo é feito em modo multitasking. Na praia, apanha-se sol ao mesmo tempo que se comenta nas redes e se compra biquinis. No carro, navegam-se listas infinitas de podcasts, playlists e telefonemas. Em casa, precisaríamos de umas 20 vidas para dar conta dos canais de televisão disponíveis, assim como de todas séries e filmes. E sim, será mesmo impossível ler todos os livros que almejamos naquela lista sem fim. Afinal, o que estamos a aprender no meio deste mar de entretenimento?


Lembro-me quando tinha menos escolhas e o tempo era mais longo. Na realidade, não fossem as escolhas limitadas da minha adolescência, talvez nunca fosse um músico ou nem sequer me interessasse por nada em particular. As longas tardes de férias ou o tempo pós-aulas era um universo quase infinito de horas, minutos e segundos de tédio profundo numa cidade pequena como Leiria. Calculo que não fosse diferente noutras cidades, mesmo as maiores, afinal muito do tédio é provocado pela falta de imaginação da imberbe juventude.


Numa dessas tardes leirienses, passei pelo Cine-Bingo de Leiria (como o nome indica, metade cinema, metade bingo, já extinto há muito) e reparei no cartaz para o filme dessa tarde. Tinha um grafismo diferente, era apresentado como se fosse uma comédia tola e chamava-se "Não dês bronca". No entanto, eu tinha lida algures num jornal sobre este tal de Spike Lee, que diziam ser uma espécie de génio cinematográfico do momento. Desconfiado mas muito curioso, paguei o bilhete e sentei-me num cinema quase vazio, com a excepção de dois pares de namorados que se sentaram nas últimas cadeiras e que usaram o escuro da sala para praticarem outras actividades lúdicas. Não sei exactamente quais, nunca olhei para trás, mas definitivamente eu era o único a ver o filme naquela sessão. O que se seguiu foi esmagador.

O filme, no seu original "Do the right thing", iria marcar para sempre a minha paixão por cinema, pela narrativa, pelo trabalho de câmaras, fotografia, pelo desempenho dos actores e, acima de tudo, pela força da mensagem e ilustração de um contexto social que parecia longínquo e que, afinal, estava presente em todo o lado. Bruto e directo, o filme parecia um manifesto punk de desagrado ao que estava estabelecido, mas em vez das habituais guitarras eléctricas que já ouvia nos Sonic Youth e Pixies, era o hip-hop que marcava esta energia em contramão com um gigante "Fight the power" dos Public Enemy a pautar várias cenas. Saí do cinema em transe. Quem era este Spike Lee? O que tinha acabado de ver?

Passado um ano, passo pelo mesmo cinema e eis outro cartaz de Spike Lee, desta vez com o filme "Mo' Better Blues". Sem hesitar, fui vê-lo nessa mesma tarde. O pano de fundo era radicalmente diferente, uma narrativa que seguia o percurso de um trompetista de jazz, mas muita da temática racial e da quebra de estereótipos continuava fortemente presente. Saí do cinema, fui direito à loja de discos (sim, nesse tempo tinha de comprar o disco se queria mesmo ouvir a música) e comprei a banda sonora do filme. Foi assim que tomei contacto pela primeira vez com o universo do jazz, até ali apenas abordado em formato easy-listening. Agora ouvia o Branford Marsalis e Terence Blanchard quase todos os dias, a decorar todas inflexões da banda e a focar-me em diferentes instrumentos a cada audição. Tinha 17 anos e as poucas escolhas possíveis tinham-me levado a um mundo que nunca tinha suposto existir.


Voltando aos dias de hoje, o tempo passa e as escolhas não param de se multiplicar. É difícil escolher entre a próxima canção, oscilando entre algo que conheço bem e o que nunca ouvi. É um exercício complexo, mas é frequente reduzir as minhas escolhas. Reduzo-as a 2 ou 3 possibilidades e avanço destemidamente. Às vezes não acontece nada, entro por ruelas desinteressantes e perco um dia inteiro nisso. Mas às vezes dou por mim à porta do Cine-Bingo com a sensação que vai acontecer alguma coisa extraordinária. E por vezes, para meu pasmo, acontece mesmo.



Ouvir e fazer música são duas actividades completamente distintas e com fins radicalmente diferentes. Ninguém começa a fazer música sem se apaixonar pelo acto de ouvi-la em primeiro lugar. No meu caso, a música invadiu o meu mundo na adolescência (e não é sempre assim?), a preencher os vazios da existência, a acalmar as tempestades emocionais, a falar comigo como se soubesse o que eu penso. Não tenho dúvidas que, sem a música, não seria a pessoa que sou hoje. Sem o impacto brutal que as canções tiveram no meu crescimento, eu seria uma pessoa diferente e menos consciente do mundo que me rodeia. Talvez o cinema tenha tido o mesmo papel, mas isso fica para outra publicação.


Quando comecei a escrever música, entendi imediatamente que era uma missão totalmente diferente. Enquanto que ouvir música era um exercício de prazer, de encontro com o outro, compôr música colocava-me no plano oposto, mais angustiante e revelador. A criação pressupõe uma abertura sobre algo que, até ali, estava escondido de todos, revelando mais do que era habitual no meu dia-a-dia. É um segredo que se coloca numa caixa e se deixa à porta de alguém, com todo o pânico que isso envolve. O processo é algo mágico: começa-se com silêncio, uma folha em branco e atira-se barro à parede até alguma coisa ficar por lá. Nunca se sabe bem o que está certo ou errado, não existem instruções ou fórmulas, apenas instinto a desdobrar-se em tentativa após tentativa de falhanços consecutivos. Até acertar.


As primeiras canções eram acompanhadas de uma certa dose de espanto e vaidade. Quando se faz algo pela primeira vez, o factor novidade é crucial no processo, tornando-o mágico a cada pequena descoberta. Mas hoje, depois de tantos anos de canções, pergunto-me: o que me faz voltar às canções? Agora que o factor novidade está esbatido por tanto barro na parede, o que me motiva afinal para continuar?


Na realidade, fazer canções não é muito diferente de muitas coisas na vida. Ao longo do tempo, o meu processo mudou dezenas de vezes, adaptando-se ao presente e ansiando pelo futuro. Aquilo que me motiva a escrever e compôr é diferente do que me fez começar, mas continua a persistir uma novidade difícil de explicar. Quando avanço para esse plano abstracto da composição, volto sempre a uma certa inocência, como se qualquer coisa pudesse acontecer, gigante ou pequena, como se tudo ainda estivesse por começar.


Na vida é igual. Como os miúdos que fotografei há anos nos Açores a mergulhar para o mar toda a tarde, nunca me pareceu que o seu entusiasmo e espanto desaparecesse ao longo do dia. Por mais que saltassem para o oceano, a sua alegria permanecia intacta, mesmo que estivessem a repetir o mesmo processo a cada dez minutos. Talvez porque o melhor mergulho de todos só possa ser o próximo e nunca o anterior.


Deixar desaparecer esse espanto juvenil no furacão aborrecido da vida adulta é um erro frequente em qualquer existência. No meu caso, combato-o da melhor forma que aprendi: navego por canções que nunca ouvi e vou avançando por elas como quem procura uma resposta. Hoje demora mais tempo, talvez esteja mais exigente, mas acabo sempre por encontrar algo que me devolve a sensação de descoberta e aventura. E é uma questão de tempo até estar agarrado ao silêncio e ao papel em branco na ânsia que algo mágico possa acontecer outra vez.


E como os miúdos, subo outra vez ao paredão e salto para a água salgada.


David



(Público em Faro, 14 de Maio de 2009. Quantos telemóveis conseguem ver?)


Para que fique claro: gasto demasiado tempo a olhar para um telemóvel. Talvez não tanto como alguns, talvez mais do que outros, mas definitivamente mais do que eu acho plausível. Combato isso frequentemente e sou auto-disciplinado, mas acabo por olhar para aquele ecrã bem mais do que o absolutamente necessário. Timelines quase eternas, a renovarem-se com conteúdo, do mais sério ao mais bizarro, a velocidade a que tudo isto acontece e a disparidade completa de assuntos torna o ecrã altamente apetecível. No entanto, acabo sempre por concluir que quase todo o tempo passado a olhar para ele é inútil e que a percentagem daquilo que se aprende e que se comunica não é assim tão alta. Em plena pandemia, a tendência de perdermos ainda mais tempo com estes aparelhos tornou-se maior, embora tivesse ficado ainda mais claro para mim que o tempo esvai-se sem razão por aquele ecrã abaixo.


Posto isto, quero debruçar-me sobre um assunto que é particularmente sensível para quem faz dos palcos vida: a presença massiva de telemóveis em concertos. Faço isto há tempo suficiente para ter observado uma mudança de comportamento total ao longo dos anos. O advento da fotografia digital, dos telemóveis com câmara e especialmente a massificação global das redes sociais mudou o nosso comportamento de várias maneiras e, neste caso, transformando o espaço de um espectáculo num exercício constante de captura de imagens e selfies descontroladas.

Quando comecei a fazer concertos, a primeira coisa que via quando entrava em palco eram as caras de quem estava lá para nos ver. Hoje, entro em palco e sou bombardeado com telemóveis e flashes, sendo sempre o ponto em comum em todas as multidões que estão à minha frente. O facto de estarmos todos no mesmo local frente a frente não é suficiente, dividem-se as atenções entre aquilo que acontece no mundo real e aquilo que o ecrã capta. Como espectador, é igual. Cheguei a observar pessoas que viram concertos inteiros pelo ecrã de um telemóvel, mesmo estando a 10 metros do palco. E pergunto-me, porquê?

(Público em Lisboa, 15 de Maio de 2009. Sem telemóveis.)


A sensação que tenho é que o mundo em directo parece não ser o suficiente. Não basta estar lá e presenciar o momento, é preciso fotografar, filmar, partilhar numa timeline. E a meio disso, ver se chegou um email novo, como está a timeline do Instagram, comentar um amigo no Facebook, talvez um swipe-right no Tinder ou descobrir quais as tendências no Twitter. A realidade passou a ser mais lenta e menos estimulante que a aventura espectacular que se passa nas redes, por mais luzes que se acendam, por mais alto que se toque. Algures no escuro de uma sala, há sempre um rosto iluminado pelo ecrã de um telemóvel, remetendo para segundo plano toda e qualquer acção em palco. Às vezes dou por mim lá em cima a pensar o que poderia eu fazer para obter a sua atenção de volta, penso em percorrer o palco nu ou trazer uns cães amestrados, mas isso só faria com que as câmaras se ligassem todas outra vez.


Antes de toda a pandemia acontecer, estava no segundo ano de uma digressão chamada "Radio Gemini Closer". A certa altura do espectáculo, descia até à plateia e sentava-me junto do público, lado a lado. Em 90% das vezes, havia sempre alguém sentado a 20 centímetros de mim a filmar-me. Quanto mais perto estou, mais depressa aparece uma câmara a um palmo da minha cara. Num momento que tem tudo para ser mais próximo, é colocada uma máquina entre nós. Uma das vezes brinquei com a pessoa e disse para todo o auditório: "Reparem como mesmo sentado ao seu lado, ele prefere ver-me no seu ecrã." Rimo-nos todos, inclusive a pessoa que filmava e avancei para a canção. Já a câmara, essa, nunca se desligou.

(Foto de Martin Parr)


Hoje somos nós, finalmente, os heróis dessa espectacularidade a que chamamos vida. Mestres do photoshop, ases da selfie, retratamo-nos como aventureiros pelo mundo, que existe apenas como fundo para servir este enredo. E estar lá não chega. É preciso provas, para que não escape a ninguém nenhum dos episódios desta temporada magnífica.



David

 

PS - Fartos de ecrãs? 3 sugestões para livros mais actuais do que nunca, ideais para tempos de pandemia:


"1984", George Orwell

"Admirável Mundo Novo", Aldous Huxley

"Fahrenheit 451", Ray Bradbury


bottom of page